"JL - 27/Março/2007
Verdades quase verdadeiras - José Luís Peixoto
Lá fora, evidentemente, existem todas as cores do dia e todos os mistérios que a luz é capaz de inventar quando pousa sobre troncos de árvores, quando atravessa as folhas das ervas – torna incandescente o seu verde – e se afunda na terra sagrada ou nesse futuro onde de decompõe os restos dos nossos antepassados e todas as memórias que deixámos cair
Passaram muitos anos. Quando, por acaso, por instantes, nos detemos na distância desses anos – envoltos por nascimentos invisíveis, dúvidas invisíveis e segredos esquecidos –, parece-nos que tudo costumava ser mais simples. Talvez nos enganemos ou talvez não, aí as nossas histórias separam-se. No entanto, tudo isso é irrelevante e não tem sequer o interesse de um grão de pó pousado na ponta afiada de uma agulha. Aquilo que é verdadeiramente importante e feito para príncipes existe ainda, transborda no mudo. Esta é a minha opinião particular porque, quanto a este assunto, não posso falar por nós. Creio que nunca me contaste esses pormenores de ti, talvez porque nunca tos tenha perguntado. Se não te importares, responde agora. Por favor, responde.
Gostavas que amanhã fosse igual a hoje? Gostavas que o resto de hoje fosse igual a ontem? Em que pensas quando sobes ou desces no elevador? Já sabes, neste momento, onde estarás hoje às nove da noite? Usas uniforme quando trabalhas? (Pensa bem antes de responderes.) Se não, estarias na disposição de usar? Se sim, quais são os pormenores com que te distingues? Quando foi a ultima vez que imaginaste que morrias e que todos aqueles que te magoaram se arrependiam? Tens horas para entrar? Como te sentes hoje? (Mesmo, como te sentes mesmo.) Se a tua vida fosse um jogo de futebol, quantos minutos já teriam passado desde o início? Quantos minutos faltariam para o fim? Primeira ou segunda parte? Prolongamento? (Claro que a tua vida não é um jogo de futebol.) Por dia, quantas vezes afastas o olhar daquilo que pára à tua frente? Achas que pode existir alguma espécie de prazer naquilo que põe a vida em risco? Perante janelas abertas, já surpreendeste o teu espírito a lançar-se? (Ao dizer «espírito», quero mesmo dizer «espírito».) Quanto cobras por uma hora do teu tempo? Quanto vale uma hora do teu tempo? (Tempo.) Passas muito tempo a esperar? Por dia, quanto tempo passas a esperar por semáforos e horas certas? Por dia, quanto tempo passas a contrariar-te? Quantas horas passas sentado? O que são dores de costas? Consegues descrevê-las? Hoje, ao acordar, interrompeste algum sonho? Como era? (Descreve esse sonho numa folha de papel, como esta, e guarda-a entre as paginas de um livro.)
Estas perguntas são apenas alguns exemplos. Não precisas de responder a estas perguntas, basta que respondas a uma pergunta que englobe todas estas, que seja o oceano onde todas estas perguntas flutuem. Não é difícil formular essa pergunta. É constituída pelo verbo «ser» e pelo verbo «estar». As respostas, normalmente, são longos poemas juvenis, escritos a esferográfica azul, em folhas pautadas, com desenhos nas margens – flores e coisas assim –; são poemas de quando ainda não tínhamos mudado de letra e treinávamos assinaturas; são poemas cujo título, sem variações, é «Eu». Como é óbvio, esses poemas podem ter prescindido das palavras e demais adereços, podem ter ficado desenhados no ar, fotografados, isolados por todos os que os testemunharam, ou podem ter permanecido anónimos e misturados com sombras da casa onde já não vive ninguém, de portas e janelas fechadas para sempre. Foi nesse instante, passagem do tempo, que percebemos que os objectos não podem dizer «eu», as memórias não podem dizer «eu». Só um par de olhos vivos e fixos no espelho podem dizer «eu» Foi também nesse instante que percebemos que havia universos inteiros que não eram «eu», que não tinham essa verdade e que, por esse motivo absoluto, eram fascinantes e pediam para ser descobertos. Universos que existiam tanto nos detalhes, como nas leis que fundamentam a humanidade. Eram concretos e específicos. São ainda concretos e específicos. É por tudo isto que, sem mais rodeios, te quero dizer: tens o direito de sair agora mesmo por aquela porta. Depois dela, sentiras um toque ligeiro no estômago – como a falta de algo – e, logo a seguir, estarás sem protecção perante o céu e perante o chão. Se quiseres, poderás descalçar-te e sentir a terra ou todos os destroços com que a povoámos. Ninguém poderá dizer-te um número de coisas que poderás fazer. Pensar nestas possibilidades é como cair dentro de uma multiplicação. Todas as roldanas desse mecanismo existem dentro de ti e, ate agora, têm estado adormecidas. Aquilo que tens de decidir não se prende apenas como o teu corpo, ainda qualquer coisa, a caminhar por aquela porta e a sair, com ou sem esperança de regressar; aquilo que tens de decidir é, sobretudo, o tamanho da tua disposição para entrares pelo buraco que tens aberto no peito.
Nisso, somos iguais. Eu, tu, aquela pessoa lá ao fundo e aquela, que passa por trás daquelas paredes. Em segredo, alimentamos a crença irracional de que, nos gestos que fazemos, poderá existir algum truque – um pequeno irreconhecível – que nos distinga até da imagem que construímos de nos próprios, até de tudo. A verdade é como uma superfície polida de mármore: não existe nada assim. Existe o dia lá fora, já te disse. Existem corpos de brisa, gigantes, a correrem pelas ruas com roupas rasgadas, a tocarem nos cabelos e nos rostos, a varrerem a nitidez das paisagens.
De qualquer forma, antes daquilo que poderá vir a ser, quero que saibas que podes olhar-me nos olhos – estou aqui – e podes fazer-me todas as perguntas que quiseres e que conseguires fazer. Não sei que conforto tenho para te oferecer, mas posso assegurar-te que, com respostas certas e erradas, com bocejos e tiros de revolver, saberei responder a todas as perguntas."
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